Ainda somos muito belicosos com as palavras. Precisamos ser capazes de concordar em discordar, o que passa por entender – mesmo – metáforas
Sim, eu sei, e digo logo de saída. Somos culturalmente predispostos a brigar quando discutimos. Observe o uso que fazemos – inconscientemente, ou quase – de termos bélicos:
– “-Seu argumento é indefensável” – “-Ele atacou minha posição e destruiu todos os meus argumentos” – “-Sua crítica acertou direto no alvo” – “-Os executivos estão todos reunidos na Sala de Guerra planejando o revide” – “-Manda bala! quero ouvir o que você tem a dizer”
Além disso, temos uma outra predisposição muito frequente: ou concordamos com tudo, ou discordamos de tudo, que a outra parte propõe. São poucas as pessoas que sabem desmontar os temas. E me parece que isto tem piorado recentemente.
Precisamos ser capazes de concordar em discordar.
A ideia de concordar em discordar não é nova. (A Wikipedia menciona seu primeiro uso em 1770.) Nas negociações entre países, precisamente os dois assuntos mais importantes – pandemia e meio ambiente – por ignorarem fronteiras, precisam ser negociados sob a premissa de que temos que concordar com algo, mas isso não significa que concordemos com tudo. Como dizem os ingleses, “agree to disagree”. Isso porque, como não existe Planeta B, países têm que continuar se relacionando.
Joseph Nye, professor da Harvard Kennedy School of Government, é um dos proponentes de que países devem entender que sempre haverá temas de interesse comum nos quais devem concordar, independente de discordarem em outros temas. Eis um ótimo exemplo no YouTube: webinar do CEBRI, de meados deste ano, no qual o Prof. Nye invoca o princípio em debate com Fernando Henrique Cardoso e o embaixador Sérgio Amaral sobre geopolítica pós-pandemia.
E ser capaz de concordar em discordar é necessário também na maioria dos relacionamentos entre pessoas, entre empresas, e entre empresas e pessoas.
Concordar em discordar passa, antes de mais nada, por entender melhor como as pessoas se expressam, e às vezes se manipulam, usando metáforas. Isso porque a comunicação humana faz uso abundante de metáforas. Criamos metáforas desde criança: a folha de papel virava um avião e (para quem cresceu perto da praia) areia virava castelo. George Lakoff dedicou a vida ao tema (Metaphors We Live By)
Spoiler alert: a partir da página 97, o livro dele torna-se – digamos – menos relevante para quem não quer ser expert em metáforas…)
Lakoff propõe uma metáfora alternativa, querendo reduzir o conteúdo bélico:
Uma discussão deve ser uma dança, não uma guerra.
Quando nos virmos em uma discussão, e havendo abraçado a metáfora da dança, a primeira pergunta é: qual será nosso relacionamento depois da solução que pretendemos? Caso haja, temos mais uma poderosa razão para concordar, pelo menos em parte. E no mundo interconectado de hoje, é quase certo que haverá algum….
Toda discussão pode ser descrita conforme as seguintes dimensões:
– Conteúdo: qual é o objeto da discussão – Pauta objetiva: o que cada parte diz que deseja – Pauta subjetiva: o que cada parte realmente deseja – Clareza/fluidez: um argumento fácil de expressar é por definição mais convincente. Um argumento que progride fluentemente de premissas para conclusões também – Estrutura: como cada parte combina fatos e metáforas para defender sua posição – Importância, para cada parte: e (perdoem a redundância) como/por que cada parte preza mais certas partes que outras
Em particular, o progresso de pauta objetiva para pauta subjetiva muitas vezes pode ser longo e árduo. Tania Almeida, minha guru de mediação, lida muito bem com o tema aqui.
Seres humanos se comunicam por metáforas (olha o Lakoff de novo), muitas vezes sem se dar conta disso. E a maioria das metáforas cai em alguma combinação das três categorias a seguir:
– Contêiner: “precisamos primeiro concordar sobre exatamente o que estamos discutindo” para chegarmos a uma solução que satisfaça a todos. – Jornada: “temos à frente um caminho difícil, cheio de obstáculos que precisamos transpor juntos” para chegarmos a uma solução que satisfaça a todos. – Edifício: “espero que com essa discussão construamos algo juntos” que satisfaça a todos. Só lembre que a maioria das pessoas não se dá conta de que fala em metáforas…
Havendo convencido seus interlocutores a concordar em discordar, e havendo apurado o seu ouvido para o uso que todos fazem de metáforas, chegou a hora de pregar a comunicação não violenta. Marshall Rosemberg desenvolveu essa técnica (CNV), a principal premissa da qual é que quem agride alguém verbalmente provavelmente tem uma necessidade emocional não-preenchida. Mais ainda se uma pessoa expressa grande Raiva no que diz (eis outro livro dele, especificamente sobre raiva aqui).
Vale a pena também googlar “Dominic Barter”, pessoa importante de CNV que atua bastante no Brasil. Curiosamente, essa carência em muitos casos pouco tem a ver com a pessoa agredida. Então, explore pelas necessidades não-satisfeitas que estão subjacentes no discurso da parte agressora. Quando em dúvida (de novo o macete de coaching) converta em pergunta:
-Será que você deseja isso porque gostaria que nós cuidássemos melhor de sua necessidade de ser ouvida?
Como a maioria das discussões envolve ideias, os desentendimentos entre as partes podem passar por diferenças (às vezes substanciais) entre a minha ideia e a sua. Observe como cada parte apresenta a sua ideia.
Além de muitas vezes adicionar clareza e fluidez, isso pode ajudar a decifrar as verdadeiras intenções da outra parte. A maioria das Ideias (conforme Lakoff) assume uma das seguintes duas formas:
– Pessoa: “ao fazer a engenharia reversa do nosso trator, vocês criaram um irmão bastardo dele”. – Planta: “se vocês aceitarem, colheremos bons frutos por muitos anos”.
O objetivo (construtivo ou destrutivo) é que a ideia ganhe vida própria ao ser tratada como ser vivo. E, a partir do momento em que se “torna” um ser vivo, vai para o centro do palco com vida própria.
Resulta que metáforas, na maioria dos casos usadas para esclarecer, também podem ser usadas para manipular. Os golpes possíveis são muitos, os mais comuns sendo:
– O apito de cachorro, mensagem deliberadamente projetada para ser entendida por uma parte das pessoas, mas não todas. Dividindo para conquistar, mobiliza alguns dos seus contrapartes enquanto aliena o resto. – O pacote fechado, pelo qual você breve será obrigado a aceitar uma ideia inteira, e o objetivo é evitar que você concorde apenas com partes do que foi proposto. Observe que aqui alguém está propondo precisamente o oposto do concordar em discordar.
Explicando o apito de cachorro (mais comum a gente ver em inglês, dog-whistle), trata-se de uma mensagem que é compreendida por apenas uma fração específica da plateia. Cachorros têm um espectro de audição mais amplo que humanos, então os treinadores usam um apito com frequências inaudíveis para humanos mas que cachorros ouvem bem. Metáfora que desde 2006 era restrita à comunidade de ciências políticas, ela viralizou em 2016 quando Hillary Clinton a mencionou na televisão (referindo-se a – adivinhe! – Donald Trump).
Claro que não pretendo exaurir o assunto aqui. O objetivo é (lá vem metáfora…) molhar o dedão do pé sobre como nos comportamos em discussões. Uma coluna futura versará especificamente sobre como conduzir reuniões com a premissa de concordar em discordar.
Quero encerrar com uma citação de Tania Almeida: “Diálogo não tem contraindicação”.”